Histórico

Este estudo revisita um segmento praticamente inexplorado na história da música no Brasil Imperial (1822 -1889), através da documentação sobre a música pianística europeia possivelmente executada no país. Sob a ótica do intérprete, o objeto deste estudo é a música de câmara e a música solística para teclado, com uma abordagem historicamente informada, seguindo as diretrizes das principais pesquisas sobre práticas interpretativas. A performance historicamente informada é o resultado de um esforço por parte de intérpretes e pesquisadores no sentido de recriar a performance musical de maneira similar àquela do período da criação das obras em questão. Para tanto, um entendimento organológico e uma abordagem semelhante àquela do environment dos compositores, no momento da criação, devem ser evidenciados.

Imperatriz Leopoldina. Pintura
de Josef Kreutzinger (1757-1829)¹

Inicialmente focalizando a música escrita entre 1790 e 1826 – consequentemente o período da Imperatriz Leopoldina –, exclusivamente por razões práticas e de disposição instrumental, gostaria de tornar a divulgação mais abrangente. Ampliando, futuramente, o período de 1790 até o final do Império, poderemos, com o engajamento de pesquisadores interessados, dar continuidade à pesquisa, compreendendo um repertório mais amplo que não se limite à seleção e instrumentarium inicialmente propostos, mas que possamos cobrir todo o período desde Leopoldina até Thereza Christina Maria. Tal divulgação será de grande valor não somente aos músicos e musicólogos brasileiros, mas informará mundialmente aos músicos e à comunidade musicológica sobre esta lacuna: a intensa presença da música europeia no Novo Mundo a partir da corte brasileira.


Thereza Christina Maria

Após o período da regência, o novo Imperador casou-se com D. Thereza Christina Maria Bourbon (1822-1889), princesa das duas Sicílias. Esta Imperatriz deixou-nos um tesouro que, como um dos principais itens está sua coleção de partituras que agrega também a coleção deixada pela Imperatriz Leopoldina.

Thereza Christina Maria nasceu 14 de Março de 1822, em Nápoles. Era a filha mais nova do rei Francesco I e de sua segunda esposa, Maria Isabel de Bourbon. Em 1842, Thereza Christina Maria casou-se com o Imperador Dom Pedro II. Em 1843 veio ao Brasil, não somente para unir-se a seu marido, como também por razões políticas.

A Imperatriz era uma mulher de grande cultura. Conhecida como "a Imperatriz arqueóloga", cultivou todos os campos do conhecimento, incluindo artes, religião e música. Quando de sua mudança para o Brasil, trouxe em sua companhia artistas, intelectuais, cientistas, músicos, artesãos, junto a coleções de obras de arte e de documentos de grande valor. Deu suporte a músicos brasileiros, tais como o compositor Carlos Gomes (1836-1896), que foi enviado para estudar na Europa. Com o advento da República -- e, consequentemente, fim do governo imperial – mudou-se para a cidade de Porto, Portugal, onde faleceu em 28 de Dezembro de 1889.

Thereza Christina Maria² Thereza Christina Maria³

A Coleção Thereza Christina Maria

Convivendo com a modinha e o lundu, a aristocracia, juntamente com a elite intelectual, podia apreciar, também, as composições musicais mais refinadas e elaboradas compostas por Ludwig van Beethoven (1770-1827), François-Adrien Boieldieu (1775-1834), João Domingos Bomtempo (1775-1842), Mutius Philippus Vincentius Franciscus Xaverius Clementi (1752-1832), Johann Baptist Cramer (1771-1858), Jan Ladislav Dusík (1760-1812), Josef Gelinek (1758-1825), Joseph Haydn (1732-1809), Johann Nepomuk Hummel (1778-1837), Leopold Koželuh (1747-1818), Etienne-Nicolas Méhul (1763-1817), Ignaz Moscheles (1794-1870), Wolfgang Amadé Mozart (1756-1791), Sigismund Ritter von Neukomm (1778-1858), Ignaz Josef Pleyel (1757-1831), Ferdinand Ries (1784-1838), Daniel Steibelt (1765-1823), entre outros.

Em nossa coleção, por exemplo, para Leopold Koželuh, ou Kozeluch, temos quarenta e nove itens; para Jan Ladislav Dusík, ou Dussek, temos dezenove, sendo que um deles "Œuvres de J. L. Dussek pour le pianoforte", editado em doze volumes pela Breitkopf & Härtel entre 1813 a 1817, contém a obra completa para teclado (piano solo, piano trios, piano a quatro mãos, piano com acompanhamento de outros instrumentos) do compositor e os exemplares lá contidos são hoje referência mundial.

Inicialmente havia deliberado sobre a pesquisa no período de 1790 a 1820. Este período teve que ser ampliado pelas seguintes razões:

Existem obras anteriores a 1790 que certamente foram trazidas por Leopoldina tais como as coleções de Carl Philipp Emanuel Bach (1714-1788) intituladas "für Kenner und Liebhaber"
1ª. Coleção de 1779,
2ª. Coleção de 1780,
3ª. Coleção de 1781,
4ª. Coleção de 1783,
5ª. Coleção de 1785 – faltando apenas a 6ª que data de 1787.

Estas coletâneas são de extrema importância por conterem obras formadoras para as gerações futuras, tais como Haydn, Mozart e Beethoven. Sua importância é tamanha que Mozart dizia que "ele (Carl Philipp Emanuel Bach) é o pai, somos todos seus filhos..."; em 1809 Beethoven escreveu a seguinte mensagem à Breitkopf & Härtel: "Eu tenho apenas poucos itens da obra para teclado de Emanuel Bach, muitas delas proporcionam não somente grande prazer ao verdadeiro artista, mas servem, também, como objeto de estudo" (BELT, 1988, p.109). Sabedora da importância destas obras Leopoldina trouxe consigo para seu próprio estudo e de outros. Acredito que a Imperatriz manteve sua prática musical até perto de sua morte, sendo este o principal motivo para colocar o ano de 1826 como data final da pesquisa. Tal decisão foi bastante difícil uma vez que existem obras interessantíssimas de datas posteriores à sua morte, mas que tornariam o catálogo muito extenso e nos distanciaria de nosso repertório principal.

A musicologia brasileira vem ampliando seu campo de ação e temos, hoje, pesquisadores dedicando-se a repertórios e fontes não especificamente nacionais. Esta pesquisa acrescenta mais fôlego a um segmento que cada vez mais trata de fundir o rigor da pesquisa musicológica ao fogo da interpretação numa abordagem historicamente informada. Acrescento, também, a urgente necessidade de uma grande divulgação sobre este tesouro musical contido na Coleção Thereza Christina Maria. A coleção é vasta e praticamente inexplorada. Contém partituras e livros raros, que circularam na corte do Rio de Janeiro e possivelmente em outras cidades.

Um fato recente que veio a reforçar a certeza da necessidade urgente de divulgarmos amplamente este acervo e pesquisas como esta se deve a uma descoberta que movimentou o cenário musicológico. Sob o título "1791 Vienne – Rio de Janeiro 1821 Requiem W.A. Mozart", Alan Pacquier entregou a músicos franceses a descoberta de um manuscrito encontrado no Rio de Janeiro do Requiem, K 626 de Mozart. A descoberta é o inédito movimento final, Libera me, composto por Neukomm, durante sua estada no Rio de Janeiro, para ser o movimento final da obra. O Requiem havia sido executado na Irmandade de Santa Cecília do Rio de Janeiro sob a direção do Padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830). Além de ser, indiscutivelmente, o final mais consistente para a obra, o manuscrito contém valiosas informações sobre práticas interpretativas de uma testemunha que não só presenciou as performances em seu país de origem, mas foi treinado em sua cidade natal, Salzburg, por Michael Haydn (1737-1806), amigo de Mozart.

Espero firmemente que este fato nos sirva como um alerta e que, no caso da Coleção Thereza Christina Maria, possamos estar adiante de pesquisadores estrangeiros para, assim, divulgar ao mundo os nossos tesouros musicais com nossa própria voz.

Alguns aspectos da Coleção Thereza Christina Maria.

Após o último suspiro de um compositor, suas obras são deixadas a seu próprio destino. Poderão ser esquecidas em uma biblioteca, poderão ser esquecidas em razão das mudanças de estilo, gosto ou mentalidade. Por outro lado, poderão ter novo sopro de vida graças a alunos, admiradores ou colecionadores, dando ao compositor uma autoridade e um carisma que ele sequer sonhou em vida. As obras podem ser descobertas muitos anos depois e aclamadas como obras-primas por pessoas vivendo outras realidades. Atualmente com a busca por uma performance historicamente informada, cada palmo das bibliotecas vem sendo vasculhadas e analisadas e grandes descobertas tem ocorrido.

A publicação de partituras tem sido por séculos o principal meio de disseminação da música. Na segunda metade do século XVIII uma avalanche de edições musicais foi disponibilizada ao público. Um novo mercado – o da música doméstica – se fazia notar por sua intensa produção e volume de negócios. Graças a este mercado muitas casas publicadoras foram fundadas e, com isso, grande número de encomendas foram efetuadas aos compositores. Os compositores tinham trabalho, as editoras pressionavam para lançar obras de música de câmara, principalmente num agrupamento com fortepiano, que cada vez mais se estabelecia como o sucessor do cravo.

Graças a esta febre mercadológica, coleções – como a que é objeto de nossa pesquisa – foram possíveis. No inicio do século XIX com o advento da litografia, que tornou a publicação mais rápida e barata ocorreu um significativo aumento editorial. Estima-se que apenas no período entre 1800 e a morte de Beethoven e Schubert publicou-se um volume maior de música que em todo o período anterior. Ainda assim as edições mais elegantes continuaram a ser as engravadas que coexistiam regularmente com aquelas litografadas. Graças à origem nobre da responsável por esta coleção podemos encontrar os dois exemplos citados. Em alguns casos temos encadernações luxuosas com a borda das páginas em ouro.

Partituras com borda de ouro.  

Assim são as obras presentes na Coleção TCM, não que as obras de Mozart, Haydn e Beethoven se enquadrem na descrição acima, mas ali ainda temos obras desconhecidas ou pouco reconhecidas. Certamente ocorreria com as obras de Jan Křtitel Vanhal (1739-1813) para fortepiano e clarineta, não fosse a escassez de obras do período clássico para essa formação. Curiosamente, para fortepiano com acompanhamento de clarineta temos, na Coleção Thereza Christina Maria, apenas um conjunto de duas sonatas de Vanhal. A Sonata per Il Clavicembalo o Piano-Forte con Clarinetto o violino obligatto Composta da J. Wanhal é uma litografia realizada em Bonn, em 1806, por Nikolaus Simrock (1751-1832) e porta a assinatura de Leopoldina, o que pode indicar que as peças tenham sido executadas por ela antes mesmo de sua chegada ao Brasil, uma vez que na assinatura lemos "Arquiduquesa Leopoldina". Apesar do titulo apresentar "sonata", o número OR-V2 contém as duas sonatas, em Si b maior e em Do maior.

Frontispício das Sonatas de Vanhal com assinatura da Imperatriz Leopoldina.

Sonata em Si bemol maior:
Allegro moderato
Adagio cantabile
Rondo – allegretto

Sonata em Do maior:
Allegro moderato
Adagio poço andante
Rondo – allegro

As duas sonatas mostram uma homogeneidade no esquema composicional. No entanto, o primeiro movimento da sonata em si bemol maior apresenta uma escrita para fortepiano e clarineta com linhas melódicas mais definidas. Por sua vez o primeiro movimento da sonata em do maior com um tema "A" mais rítmico e solene em uníssono demonstra claramente uma predominância da clarineta sobre o fortepiano. Os segundos movimentos são de beleza ímpar, plenos de melodias encantadoras.

A definição do instrumento predominante em cada uma das sonatas é apresentada nos terceiros movimentos. O tema do rondo da sonata em si bemol é apresentado pelo piano com a imitação da clarineta. Cada eingang escrito por extenso ou mesmo os subentendidos são deixados ao piano. No rondo da sonata em do maior a clarineta apresenta o tema do refrão acompanhado por acordes quebrados em colcheias pelo piano que só imitará o refrão no compasso nove. As fermatas dos compassos 47, 106, 143 e 190 todas sobre um acorde de dominante com sétima, sugerem que cada eingang seja executado pela clarineta. Assim temos um par equilibrado de sonatas de uma dificuldade média para uma formação não tão comum até a data de 1806.

Ainda relacionando os aspectos musicais de Leopoldina e sua família, tenho as partituras de uma série de três piano trios dedicados à Imperatriz brasileira que não consta de nossa coleção e três piano trios dedicados à sua dileta irmã Maria Luisa, ou Maria Ludovica Leopoldina Franziska Therèse Josepha Lucia von Habsburg-Lothringen (1791-1847), Rainha dos Franceses de 1810 a 1814, ou simplesmente Maria Luigia di Parma, de 1814 a 1847 por decreto do Congresso de Viena.

Os dedicados a Leopoldina forma escritos por seu professor Leopold Koželuh (1747-1818) e portam o seguinte título:

Trois sonates pour Le Piano Forte, avec l´Accompagnement d´um Violon et Violoncelle, composées et dediées A Son Altesse Imperial Madame Archiduchesse Leopoldine, Princesse Royale de Portugal, Brésil et des Algarves par Leopold Kozeluch, Maître de Chapelle de S. M. l´Empereur d´Autriche. Op. 63. London Birchal & Co.

Encontramos exemplares destes trios, catalogados sob o número P IX: 55-57 (POŠTOLKA, 1964, p. 240-241), na British Library em Londres, National Library of Scotland, Edinburgh e na University Library, Cambridge. Nossa cópia é do exemplar da British Library.

Os Trios Op. 63 são assim divididos:

Sonata I em Si bemol maior (P. IX:55)
Allegro
Villareccio: Allegretto moderato

Sonata II em Fá maior (P. IX:56)
Allegro
Andante
Finale: Allegretto

Sonata III em Do maior (P. IX:57)
Allegro
Andante
Finale: Allegro grazioso

Frontispício dos Trios Op. 63 de Koželuh  

Outro agrupamento de três trios são dedicados a Maria Luisa e foram escritos por Ferdinando Paer (1771-1839) com o seguinte título:

Trois Grandes Sonates pour Le Pianoforte avec Accompagnement de Violon et Violoncelle ad libtum composée et dediées à as Majesté l´Imperatrice et Reine Marie Louise, Achiduchesse d´Autriche par Ferd. Paer. À Leipzig chez Breitkopf & Härtel
Minha cópia vem da Sibley Music Library da Eastman School of Music. Os trios são:

Sonata I em Si bemol maior
Allegro
Larghetto
Rondo, allegretto com moto

Sonata II em Lá maior
Allegro com brio
Andante
Allegretto vivace

Sonata III em Mi bemol maior
Allegro
Larghetto
Tempo di Polacca

 

Frontispício dos Trios de Paer.  

1. Disponível em: <wikimedia.org/wikipedia/commons/a/a8/29-_Imperatriz_rainha_D._Leopoldina.jpg>
Acesso em: 15 jan. 2010.

2. Disponível em: <wikimedia.org/wikipedia/commons/9/96/Imperatriz_D._Tereza_Cristina2.jpg>
Acesso em: 15 jan. 2010.

3. Disponível em: <wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Teresa_Cristina_1883.jpg>
Acesso em: 15 jan. 2010.

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